Para Gamificar, não basta maquiar!

Como um pesquisador de games e professor, já desejei fazer alguns experimentos em sala de aula com gamificação. Por isso, comecei minha jornada fazendo cursos online e comprei alguns livros que tratam o assunto diretamente.

Os livros ajudaram, em parte. O problema é que, ao comparar a maioria daqueles discursos com as teorias de game design, não parecem que as propostas de gamificação na sala de aula estão acertando a mão com seus alunos. Afinal, como já discutido, gamificar não é substituir o nome de “prova” por “chefão”, fingindo que a aula tradicional de física, a partir de agora, é um jogo legal. Não será. Vai ser visto como uma aula mal travestida de videogame, e talvez gere mais desconforto dos alunos do que a desejada participação.

É nesse sentido que critico a proposta da empresa Playdea. Com a boa intenção de promover novas estratégias para melhorar os resultados nas salas de aula, tem uma proposta muito semelhante a essa maquiagem falsa do conteúdo escolar.

Antes de começar qualquer crítica, um reconhecimento. Existe a possibilidade de que eu esteja muito errado ao criticar a Playdea, pois não conversei com ninguém da empresa, construindo minhas percepções realizadas através de um documento explicativo publicado por eles mesmos e através da minha experiência através de sua plataforma em modo trial, com acesso limitado. Ao mesmo tempo, procuro reconhecer a excelente proposta de sistematização e digitalização do sistema tradicional de ensino, com todos os benefícios que isso pode trazer para professores e alunos.

Abaixo, segmentos do texto explicativo da empresa sobre o que é gamificar, e minhas ponderações:


Concordo

– Educação alheia à tecnologia

A academia, de maneira geral, é bastante tradicional. Instaurou-se o método de ensino padrão no formato de aula expositiva com exercícios baseados em perguntas e respostas, trabalhos documentados em texto e avaliações nos mesmos formatos, e não é tão comum quando gostaríamos encontrar quem sai dessa estrutura de maneira inteligente. Existem diversos métodos de ensino que, por exemplo, procuram educar com mais enfoque na prática do que na teoria, mas geralmente estão relacionados ao ensino fundamental. O ensino superior, em contrapartida, é muito rígido em estrutura e raramente se abre para novas possibilidades. Por consequência, o ensino médio, voltado para o treinamento ao vestibular, reforça os métodos fundamentado em provas. A tecnologia – ou melhor, uso de aparelhos eletrônicos para comunicação e gestão de informação – pode facilitar trabalho de alunos e de professores de qualquer nível de ensino, contanto que seja pertinente.

– Não basta escolher jogos aleatórios e aplicar no contexto educacional.

Sim! Mas amplio: não basta escolher qualquer coisa de modo aleatório e aplicar em sala. Jogos, tecnologia, conteúdo, professores e alunos tem que estar em um estado de concordância e, se possível, sinergia. Aleatoriedade é algo que raramente cai bem em um plano de ensino. Tudo é pensado, planejado, estruturado, medido. Nem sempre dá certo, pois esse é o desafio de lidar com pessoas – elas são diferentes, e exigem cuidados particulares, algo complicado de fazer na estrutura tradicional de educação em massa. Por isso é difícil (impossível?) achar a fórmula do sucesso na educação. Já a fórmula do fracasso é mais fácil – aplique qualquer coisa, sem planejar.

– Aluno aprende se divertindo

É verdade. Aprendemos muito quando nos divertimos. Quem não gosta de assistir a um filme, ler um quadrinho, conversar com alguém engraçado e jogar um bom game? São experiências memoráveis, que algumas vezes nos lembramos por décadas a seguir. Nas suas propostas, elas nos ensinam coisas: que o Frodo carrega o um anel, o Hulk é verde e forte, o Mussum fala cacildis e o Mário faz aquele som quando pula. Por que isso não pode, então, nos ensinar outras coisas mais interessantes? Quem trabalha com formação de pessoas costuma se indagar desta forma, e procura as mais diferentes técnicas para transformar um conteúdo denso, trabalhoso e complicado (chato) em algo mais palatável. Geralmente, falham. Mas onde está o erro? Confunde-se a diversão da risada contagiante decorada de balões coloridos e pipoca doce com o envolvimento que uma situação pode promover. Um jogo de xadrez pode não ser divertido nesse sentido, mas certamente pode ser muito envolvente. Assim como um jogo da Copa do Mundo, apesar de toda tensão que promove. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, bastante estudado em game design, fala da relação entre a dificuldade do desafio oferecido e a habilidade do sujeito e que, quando isto está em equilíbrio, entra-se em um estado de fluxo (flow, no original), um estado mental de imersão total na tarefa. Conforme se realiza a tarefa, vai se ganhando habilidade nela, e a dificuldade precisa aumentar de acordo. Nosso cérebro gosta de aprender.

– Recursos tecnológicos funcionam como chamariz para esse novo perfil de aluno.

De fato, funcionam. Ao mesmo tempo, é exatamente por servirem apenas de chamariz, como uma promoção publicitária maldosa sugerindo descontos falsos, que correm o risco de fracassar. Usar a tecnologia por ela mesma cai na falha da aleatoriedade apontada anteriormente.

– Games divertem: não alienam, mas libertam a mente e enriquecem a experiência acadêmica quando utilizados da maneira adequada.

Games não alienam necessariamente, mas são uma mídia como qualquer outra. Tudo, no exagero, faz mal. Incluindo estudar e fazer exercícios, mas isso geralmente não se fala. Até sorvete demais nos entristece.

Mas concordo que muita gente enxerga o potencial educacional dos jogos. É uma ferramenta de simulação, que oferece ao jogador/ aluno um ambiente seguro para cometer erros e aprender no processo, seja por iteração (tentativa e erro) ou por estímulo do sistema de regras (prêmios, objetivos, limites impostos etc.). Pode ser um boa ferramenta educativa, se usada corretamente.


Discordo

– Ir além das metodologias tradicionais de ensino para dar significado ao processo de aprendizagem e torná-lo verdadeiramente relevante.

Não há nada necessariamente errado na metodologia tradicional de ensino. Afinal de contas, ela tradicionalmente funciona, ainda que seja bastante questionada em termos de eficiência. Procuramos métodos de aprender mais, mais rápido e de maneiras menos doloridas. Seguramente, ficar debruçado sobre um livro, por horas a fio, escrevendo resumos, destacando trechos importantes e fervilhando a mente em busca da compreensão não é nada agradável, mas funciona.

Quando estou no papel de professor, gosto que meus alunos se dediquem deste modo. Mas, quando estou do lado do aluno, também me sinto esgotado, frustrado e decepcionado com meu próprio desempenho. Estudar, desta forma, é ruim. Existem tantas outras coisas mais interessantes acontecendo no mundo, especialmente depois que conseguimos acessá-lo e simulá-lo através de um clique. E é difícil manter a concentração quando nosso cérebro parece exigir que façamos qualquer outra coisa, se não a tarefa em questão. Nossa mente gosta de novas informações, mas não gosta de trabalhar para obtê-las – a não ser que enxerguemos a recompensa, ainda que de maneira distante. Nesse caso, nós nos sujeitamos às dificuldades porque almejamos a recompensa no final. Se não há uma motivação intrínseca, não há método de ensino que enfie o conteúdo na cabeça de ninguém.

(Sobre uma discussão leve e interessante sobre jogos e o funcionamento da mente, leia KOSTER, Raph. A Theory of Fun for Game Design. Arizona: Paraglyph Press, 2005)

– Aluno aprende se divertindo

Quem não gostaria de aprender se divertindo? O argumento número um entre os jogadores de videogame é que aprenderam muito inglês jogando (afinal, é a língua mais comum nessa mídia), ou que estimula a resolução rápida de problemas e coordenação motora. Há, até, estudos científicos no campo da biologia em geral e psicologia em específico que investigam essa possibilidade. Mas, novamente, existe um problema na palavra “diversão”. Divertido é um estado momentâneo, condicional, e não uma constante. Nem os videogames são sempre divertidos. Afinal, quando se perde pela centésima vez, o jogo já não tem mais tanta graça. Mas algumas vezes insistimos, continuamos perdendo, porque o prêmio vale a pena. Uma boa discussão disto pode ser vista em “JUUL, Jesper. The Art of Failure: an essay on the pain of playing video games. Cambridge: The MIT Press, 2013”.

O que não concordo da expressão é que deixa implícito que o aluno não aprende de outra maneira. Se não há motivação para estudar, não é através do entretenimento que se resolve o problema. A diversão é apenas uma estratégia retórica, convidativa. É preciso, ao mesmo tempo, ter vontade de aprender.


Meu teste do sistema:

Em essência, trata-se de um quiz game (uma prova, com teste de perguntas e respostas), onde o aluno recebe pontos e medalhas por passar de etapas. O professor recebe feedback de pontuação da sala e outras métricas, o que pode ajuda-lo no controle da sala.

A vantagem disto está, precisamente, no sistema de feedback instantâneo, avisando ao usuário onde ele está acertando e errando. Para o professor, a vantagem de ver, por turma, as dificuldades comuns ou possíveis problemas de questões. Para o aluno, assim que dá a resposta, verifica se está errada e, no caso, qual seria a resposta correta. Isto deve diminuir bastante a ansiedade do aluno que, ao responder esse tipo de questão teste, não tem nenhum retorno sobre seu desempenho. Esta é a tecnologia sendo utilizada para auxiliar o educador.

Ao mesmo tempo, acho pouco provável que o conteúdo escolar tenha se tornado mais fácil ou divertido por conta de uma maquiagem no formato. Abaixo, uma questão do sistema:

 MUV – Acelaração escalar média:

Em um anúncio de um automóvel, afirma-se que o veículo, partindo do repouso, atinge a velocidade de 108 km/h em 8 s. Qual é a aceleração escalar média desse automóvel?

Resposta:

(  ) 2.5 m/s² (  )1 m/s² (  )3.75 m/s² (  )5 m/s² (  )3 m/s²”

Não vejo diferença do sistema tradicional de ensino, tão criticado pelo próprio desenvolvedor. Aparentemente, a expectativa de elemento diferenciador reside na distribuição de pontos e medalhas para o aluno, como se isto fosse suficiente para transformar o exercício proposto em algo divertido de resolver. A proposta deles, em suma, não é gamificar, mas é usar um eficiente sistema de feedback – o que é muito importante – aliada a uma buzz word para auxiliar na divulgação. E dá certo.

Mas então o que é Gamificar? Ao meu ver, é dar como solução um jogo para uma situação que tenha como objetivo de formar ou informar alguém – como advergames, serious games e campanhas promocionais. Isto já é feito há algum tempo, mas ainda estamos aprendendo como fazer isto direito. A escola, enquanto uma instituição com uma responsabilidade enorme – a da formação humana – procura se repensar e encontrar métodos mais eficientes para disseminar conhecimento. O processo, no entanto, não é fácil, tampouco simples.

A proposta da Playdea é um experimento que, espero, gere um bom aprendizado para a empresa e também para quem a aplica. Assim como a empresa, também vejo esse grande potencial nos jogos enquanto colaboradores em uma metodologia ativa de aprendizagem. Mas pontos e medalhas não me parecem a solução.

Bibliografia:

ADAMS, Ernest. Fundamentals of game design, second edition. Berkeley: Pearson Education, 2010
FRASCA, Gonzalo. Play the message: play, game and videogame rethoric. Agosto de 2007. 213 f. Tese (doutorado em Videogame Studies) – Dinamarca: IT University of Copenhagen, 2007. Disponível em <http://www.powerfulrobot.com/Frasca_Play_the_Message_PhD.pdf>. Último acesso em 17/06/2014.

KOSTER, Raph. A Theory of Fun for Game Design. Arizona: Paraglyph Press, 2005.
SCHELL, Jesse. The Art of Game Design: a book of lenses. Nova Iorque: CRC Press, 2008.
SHELDON. The Multiplayer Classroom: Designing Coursework as a Game, 2012
WERBACH, HUNTER. For the Win. Filadélfia; Wharton Digital Press, 2012

 

Author: Mauro Berimbau
Mestre em comunicação e consumo pela ESPM, com o tema "Advergames: comunicação e consumo de marcas". Lecionando na mesma instituição, pesquisa sobre jogos eletrônicos, entretenimento e marketing e mantém o laboratório de desenvolvimento e pesquisa lúdica GameLab ESPM. Fã e colecionador de videogames. Pesquisador nos campos de: ad-making, marketing, Cyber-cultura e games, especificamente a compreensão dos games como mídia.