Futebol não é jogo? Uma discussão sobre regras de jogos inspirada pela Copa do Mundo

A Copa do Mundo no Brasil estimula até o mais nerd dos nerds a discutir futebol. Afinal de contas, sabemos: gamer de verdade jogou pelo menos 80 horas em Skyrim, detonou GTA, discute por horas o time Pokémon perfeito e tem em World of Warcraft a sua religião – mas nunca tocou um jogo da série FIFA Soccer. A copa faz milagres.

Foi assim que iniciei uma discussão com o game designer, professor, autor, pesquisador e doutorando Vicente “Vince Vader” Mastrocola. Ao vermos o duvidoso pênalti marcado a favor da seleção brasileira logo no primeiro jogo da Copa, entendemos que o juiz é um elemento de imprevisibilidade dentro do jogo. Está lá para reforçar as regras, mas, assim como no RPG de mesa, pode interpretá-las como acha mais adequado dentro de certos limites não claramente delimitados em prol da competitividade, justiça e outros atributos subjetivos. Se as regras não são fixas, pode o futebol ser um jogo? Ou ainda, se a aplicação das regras depende da interpretação do juiz em campo, não se assemelharia o futebol mais ao RPG, por ter regras flexíveis?

Apresento essa discussão em profundidade em um texto que disponibilizo aqui, para os interessados.

Para resumir o papo, um exercício: Lembrem-se de todos os jogos digitais que já jogaram. Qual deles tem regras variáveis? Tomb Raider, Minecraft, Assassin’s Creed, Flappy Bird, Battlefield e Street Fighter podem ter múltiplos finais, estratégias, caminhos a escolher… mas todos possuem a mesma regra. Os tiros disparados pela Lara Croft causarão sempre o mesmo dano, pois seguem atributos programados pelo sistema.

Já no futebol, o juiz pode determinar se aquela despencada na área foi ou não pênalti. As regras, portanto, não são constantes, dependendo da interpretação do juiz. E agora, Arnaldo César Coelho?

Segundo a visão de Jesper Juul (2011), um dos gurus do Game Studies, e do nosso senso comum, o futebol é um jogo. Mas onde entra a “interpretação” das regras do juiz? A pergunta é importante pois não se aplica apenas ao futebol, mas a todos os jogos cuja aplicação e vigilância das regras dependem da interpretação e sensibilidade de pessoas, como esportes em geral, jogos de carta e tabuleiros, de interpretação, gamificações e quase todos outros que não são regulados por sistemas computacionais, como os videogames. Uma pergunta semelhante: caso o consumidor não siga o manual de instruções, ele está estragando o jogo?

JUUL - Classic Game Model

Vou dividir uma história pertinente. Por muito tempo joguei Monopoly da seguinte maneira: se caiu em um espaço com uma propriedade que ninguém comprou, você pode escolher se quer adquiri-la ou não. Caso não queira, ela se mantém com o banco até que algum outro jogador caia naquela mesma casa e compre-a, se por isto se decidir. Isto dificultava bastante o jogo que depende da junção de “coleções” de propriedades da mesma cor para possibilitar progresso, além da sorte nos dados, que precisava ser imensa para que um mesmo jogador conseguisse cair nos espaços desejados. 

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O tabuleiro de monopoly: os jogadores precisam ter todas as propriedades de uma determinada cor para progredir no game

Apenas recentemente descobri que há a regra do leilão, bastante clara no manual que acompanha o jogo: quando essa situação ocorre, a propriedade não volta para o banco, mas é leiloada pelo valor mínimo de $1, ganhando o jogador que pagar mais. Assim, qualquer jogador que caia naquela casa põe a propriedade em jogo, se tornando mais fácil adquirir coleções. Fiquei duplamente surpreso. Primeiro pela descoberta de que todas as injúrias proferidas aos criadores do jogo eram infundadas. Segundo, e mais importante, por termos utilizado regras alteradas e isto não ter aparentemente impactado na nossa experiência enquanto jogadores, pois vínhamos consistentemente nos divertindo com Monopoly.

Como agentes reforçadores da regra, eu e meus colegas jogadores falhamos terrivelmente. Nós não seguíamos as regras à risca e, ainda, inventávamos outras regras para suprir nossa incompetência em ler um manual com atenção. Poderíamos dizer que não estávamos jogando, pois flexibilizamos as regras? Como juízes do jogo, alteramos a regra escrita, interpretamos mal, mudamos lances… e, por isso, deixamos de jogar?

Quem apresenta tal discussão com grande maestria é o Doutor Gonzalo Frasca em sua dissertação (2007), onde procura, inicialmente, definir o que é jogar e o que é jogo – uma discussão que pode parecer tola ao senso comum já que envolvem a atividade e o objeto que são tão comuns no cotidiano, mas que possuem inúmeras interpretações e, portanto, de difícil debate acadêmico. Separar o jogo enquanto objeto (e sua estrutura formal) do ato de jogar e considerar ambos essenciais para a existência do jogo como um todo é a chave para a compreensão desta situação. Não basta uma estrutura formal, é necessário que os jogadores acreditem no jogo. Afinal, para Frasca, “jogar é subjetivo” (p.50). Isso significa que uma determinada atividade pode ou não ser jogo, dependendo, entre outros elementos, de um estado mental dos envolvidos. 

A partir de Frasca, diria que o papel do juiz, desde o princípio dos jogos, é de reforçar as regras e, mais importante, de manter coeso o envolvimento dos jogadores e espectadores com o jogo. Temos a sensação que as decisões tomadas são hora a favor do nosso time, hora do oponente – o que talvez demonstre nosso envolvimento enquanto espectadores – mas, acima de tudo, as decisões do juiz são sempre a favor do jogo enquanto um sistema de regras que exigem participação para produzir sentido. A imprevisibilidade, colocada em questão, não é um atributo particular do juiz, mas de todo o sistema do jogo. O juiz é tão culpado de ser imprevisível quanto o jogador, que pode ter cãibras ou que pode “acreditar na bola” e fazer um lance memorável.

arcade-1-arm-carVejo essa discussão muito pertinente para quem trabalha com gamificação. Afinal, como fazer com que os usuários do seu website, alunos em sala de aula e funcionários em treinamento se mantenham participativos? Como respeitar os diferentes perfis e fazer, ainda, com que todos gostem do conteúdo? Essas são dúvidas que eu possuo enquanto um profissional que trabalha com isto. Compreender que o ato de jogar é subjetivo faz-me sentir como um juiz de futebol, ou um mestre de RPG em sala de aula – não tenho um sistema computacional que faça meus alunos seguirem à risca as regras, e por isso sinto que é preciso retorcer certos limites para manter esse estado mental de participação. Uma vez quebrado, dificilmente é restaurado.

Afinal, se o problema reside na dependência da imprecisa decisão humana para o seguro prosseguir do jogo, o próprio Juul reconhece o papel da computação nesse processo. Não se trata da aplicação de câmeras nos estádios, como disse anteriormente, mas de criar sistemas computacionais que geram diferentes experiências para seus usuários – conhecidos como cibertextos (AARSETH, 1997) ou videogames. Eles mudaram a forma através da qual as regras são processadas em um jogo, pois conseguem manejar regras complexas e suas inúmeras dinâmicas de modo que seres humanos jamais conseguiriam (JUUL, 2011, p 53). Portanto, se alguém espera um jogo de futebol preciso onde as regras são aplicadas à risca e de modo matematicamente inquestionável, é melhor ligar seu PC e jogar o FIFA 14.

Author: Mauro Berimbau
Mestre em comunicação e consumo pela ESPM, com o tema "Advergames: comunicação e consumo de marcas". Lecionando na mesma instituição, pesquisa sobre jogos eletrônicos, entretenimento e marketing e mantém o laboratório de desenvolvimento e pesquisa lúdica GameLab ESPM. Fã e colecionador de videogames. Pesquisador nos campos de: ad-making, marketing, Cyber-cultura e games, especificamente a compreensão dos games como mídia.

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